sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Ciranda de zelos























Dessa vez,
coube a Eliane,
a irmã número um,
que exala alfazema e madeira,
os cuidados das primeiras horas.

Quando minhas costas fendidas
ardiam em dor,
sentei na beira da cama
e pousei a cabeça no seu colo,
como um filho maior do que a mãe.

Já em casa,
descobri que, com os dedos,
ela faz revoada de borboletas,
encrespa os poros como capinzal em ventania,
vitaliza as sete camadas da derme,
aniquila cansaço, dor e coceira de cicatrização...

E, assim, já há algumas décadas,
nos serenamos reciprocamente,
certos de que os cuidados que nos deram papai e mamãe
são semente enraizada em nossos corpos e almas
e que a aventura da vida pode ser curtida sem sustos,
entre outras coisas, por que não somos sós.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Dia de 'se-lembrar'

Hoje Everaldo completaria 48 anos, empatando por um mês com Eliane que, pelas tradição de Bukingham, herdará a coroa lá de casa. Como ele foi habitar o eterno aos 32, fico olhando para as pessoas de 48, tentando pintar o irmão grisalho que não tive. O lugar mais certo de encontrá-lo, entretanto, é o meu próprio espelho e essa, de longe, é a melhor parte do rito diário de retocar a barba. Curioso como eu que gastei a infância e adolescência inventariando o quanto éramos diferentes, hoje não acho ninguém a quem eu me pareça mais. Tem dia que a semelhança é tanta que dou um risinho para o espelho, como uma saudação silenciosa e certa de que ele está por ali, como aqui, na parede à frente da mesa onde trabalho, entre as fotos da gente lá de casa que veio me dar solo nestas paragens ao Norte.
Meus sobrinhos são outro lugar de encontrar Everaldo, seja nos traços da Natália, na boa-gentice de Bruno e até na gaiatice do Arthur - sendo esses dois últimos os traços que me atiram no colo do pecado capital da inveja. Tenho certezas inabaláveis de que tudo ia ser um mar-de-rosas se me fosse dado trocar minha toupeirice pelo descolamento desses moços. Mas essa também pode ser mais uma das nossas semelhanças: achar que o "outro" tem os dons e os bem-quereres que nós próprios não gozamos, como tivemos, por sorte, oportunidade de rir do quanto um achava que o outro era o preferido de casa...
Meus motivos eram claros e razoáveis: nasci logo depois de uma dupla que inaugurou a vida de avós e tios dos dois lados da família, enquanto eu ocupava um lugar incerto de terceiro ou quarto lá de casa e já me embolava com a Flávia e a Carla na renca de netos e netas de seu Natal. Além do mais, Eliane e Everaldo eram crianças tão lindinhas, magrelas e docinhas, que me dá raiva até hoje. Eu, tipo parrudo, no corpo e na falta de humor, já não era pra brincadeiras e ainda fui turbinado com um curso avançado em palavrões oferecido por tio Nêgo... Nessa altura mamãe teve de jejuar um semestre sem poder ir à feita do sábado - evento marcante da vida social sambentense até hoje - por falta de quem voluntariamente corresse o risco de tomar conta de mim...
Sonhei muito rir dessas histórias com o Everaldo, quando a barba grisalha murchasse os dramas patrocinados pelos hormônios da puberdade. A vida, porém, tinha outro script e, então, eu tomo a contação de histórias como uma forma de desfrutar esse prazer.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Rolos e encrencas




Isso não é uma praga, mas se eu estivesse matriculado em uma pós-graduação, juro que prestaria atenção nestes dois parágrafos. Uma terça-feira de um mês insignificante qualquer, quando você estiver de ressaca de uma noite mal dormida devido a uma gastrite reincidente, justamente aí você vai conhecer o significado da palavra "bug", uma "paradinha" que implica na "paralisação" do seu computador por uma instalação automática do Windows que deu problema somente para os usuários do Brasil. Não adianta se esconder na calota polar: o bicho vai farejar a sua brasilidade do mesmo jeito e mais: provavelmente vai adivinhar que você é um pato total em termos de máquinas de qualquer porte ou natureza, que terá um encontro com sua orientadora em duas horas para apresentar os avanços de um capítulo encravado, que o seu último backup foi feito há coisa de dois meses e que os seus socorristas habituês estão no mais paradisíaco dos países, mais ou menos 8 mil quilômetros ao sul.

Se der sorte, mas sorte, muita sorte mesmo, antes de tomar veneno de rato, vai lembrar dos arquivos enviados para os colegas na véspera, correrá para a biblioteca da universidade onde há computadores disponíveis, encontrará a professora mais cordial do que nunca, será elogiado pelo trabalho que agora está quase-mais-ou-menos e ainda vai conseguir ser instruído remotamente por um dos seus sempre explorados e gentis amigos. Para completar o milagre, descobrirá por sua conta e risco que no seu computador o "abra-te sésamo" é a F11 e não a F8, como está publicado na comunidade de vítimas da Microsoft, optará por um triz por fazer um backup no módulo de segurança antes de recuperar o sistema (e fuder com tudo), e ainda chegará em casa a tempo de comer, tomar banho e ir assistir Aida - a primeira ópera da sua vida. Conto essa parte depois.

sexta-feira, 29 de março de 2013

"E nesse dia branco..."






A memória é um dos meus muitos cavalos sem freios. Se me fosse dado impor-lhe rédeas, a vista da cidade na manhã de hoje, seguramente, não seria esquecida. Pela terceira vez, mais ou menos, deu-se aquela combinação de frio e humidade que cria bolinhas de neve pequenas e em quantidade suficiente para pintar de branco cada galho magro das árvores e arbustos nus pelo inverno rigoroso de tantos meses. Uma paisagem bonita de ver, ainda mais num dia com poucos carros e muito silêncio.
Bem diferente da colorida, quente e não menos bonita paisagem dos meus tempos de Jesus, nas ruas de São Bento e nas estradas do Brejo Velho e de Olhos d'Água. Isso mesmo: fui um quase ator de quase sucesso de peças sazonais, com talento suficiente pra ser o José do Natal e o protagonista da sexta da paixão. Há umas fotos por aí para contestar certa incredulidade tanto relativa à minha carreira teatral, quanto ao hoje inimaginável fato de eu não ter precisado de peruca para o Nazareno, porque era eu mesmo um cabeludo. Como elas não estão comigo, dependo inteiramente da sua fé e da sua imaginação.

domingo, 17 de março de 2013

"São dois pra lá, dois pra cá"

Lembra que avisei no último recado que estava chegando ao meio do caminho e que o inverno estava fraquejando? Pois disse uma verdade e uma mentira. O inverno em Winnipeg ignora solenemente a calendário e, a dois dias da primavera oficial, a neve pinta de branco até as pistas de rolagem, como você pode ver...

Sobre o meio do caminho, isso é verdade. No meu ano convencionado, hoje seria o 1º de julho, quando os 365 dias se partem bem ao meio e, amanhã, terei 183 dias "vencidos" e 182 de "saldo". Essas datas sempre pedem um balanço, mas eu morro de medo de fazer contas de qualquer tipo. De qualquer modo, digo que me sinto feliz com a oportunidade de viver essa experiência e que sinto um tantinho de orgulho (de mim para comigo mesmo) de me saber capaz de enfrentar um dos poucos climas do planeja que, ao longo do ano, faz um passeio de 70 a 80 pontos na escala Ceusius, caindo perto dos 50º abaixo de zero e, depois, subindo aos 30º.
Há coisas, porém, que nem uma desistalação do tamanho da que eu vivo dá jeito. Continuo tendendo a peru, morrendo na véspera de tudo que eu mesmo invento só pra manter a ansiedade em alta; sou um matuto em qualquer latitude e idioma; e, definitivamente, morro de inveja de quem bebeu água de chocalho e é capaz de enfia um assunto no outro, não importa com quem converse, onde ou como o faça. Meu sonho era ser assim. E ainda queria falar rápido pra fazer caber mais palavras dentro dos segundos!
Fora essas coisas, já bem conhecidas de todo mundo, tenho evitado pensar em feijão-de-corda, pamonhas e "jantinhas" dos botecos do setor universitário mas, no tempo certo e no tempo errado, posso ver as espirradeiras, as quaresmeiras e as sibipirunas das ruas da gente. Isso não tem jeito de segurar. Aí eu suspiro fundo... e vou em frente.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Tempo de passagem

Nesses dias vou inteirar seis meses ou o meio do caminho da minha estada em Winnipeg, justo no tempo em que o inverno dá sinais de finitude, perceptível na luminosidade cada vez mais larga dos dias, no passo desacelerado dos transeuntes e nas primeiras águas de degelo no passeio público. Desde que cheguei, acordo para os lados de onde brota o sol, mas sinto que estou na minha sala em Goiânia, portanto mirando o Oeste e ainda não houve bússola que corrigisse este meu senso "mareado".
Nas tardes, quando o cansaço das leituras me tira da mesa de trabalho, um dos meus prazeres correntes é simplesmente ficar de pé e admirar a gente que parece voltar pra casa sob uma luz laranja, como a dos sóis de agosto no Planalto Central do Brasil. Hoje, completou a cena, esse moço com urgência de leitura, a ponto de não fechar o livro nem na travessia da rua, muito menos na segurança da calçada. A rapidez da minha consciência de que aquilo era belo e a lentidão da minha máquina permitiram apenas dois cliques, mas é como se dois cenários completamente distintos tivessem sido montados quando, na verdade, fora dados dois ou três passos, não mais, testemunhados através de um vidro ainda embaçado por cem ou mais dias ininterruptos muitos dígitos abaixo de zero.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Gente do bem

Detalhe de obra do Moma
As três primeiras surpresas e boas impressões de New York me foram dadas por mulheres e dizem respeito a "gente". Para um matuto sem conserto como eu, megacidade é sempre sinônimo de impessoalidade, individualismo e até ruindade: gente querendo aplicar golpe, roubar e fazer outras maldades. Tenho visto, felizmente, que nem sempre é assim.
No caso de New York a primeira interação aconteceu durante a viagem, quando encontrei uma senhora oriental, residente em Winnipeg e que fizera o mesmo percurso que eu, incluindo o transporte público do aeroporto LaGuardia até a ilha de Manhattan. Primeiro ela buscava o balcão da Delta no aeroporto de Ottawa, onde fizemos conexão, e depois carregava sem poder uma mala, uma mochila e uma caixa comprida com rodinhas com o que julguei ser, no mínimo, uma viola de gamba. Nos dois casos, ofereci ajuda, primeiro indicando o balcão e depois carregando a mala. Então chegou a vez dela me ajudar, mobilizando metade da tripulação do ônibus, para identificar qual seria a minha parada, para fazer conexão com a linha "C" do metrô. Pelo caminho descobri que ela é professora de música, tem dois filhos e viajava para ver o recital de um que estuda em New York e da outra que estuda em Chicago, para onde arrastaria suas malas dias depois. Essa primeira mulher desceu antes de mim, mas somente depois de providenciar uma família hispânica para me "adotado", com acompanhamento até o elevador da Rua 125, no Harlem, onde encontrei a segunda mulher.
Essa, de quem também não sei o nome e a quem tampouco tive chance de me apresentar, teve um encontro comigo do tamanho de uma viagem de elevador que, aliás, só aconteceu por causa dela própria. Junto comigo, primeiro, entrou no cubículo um casal de malas vermelhas e fala francesa. Entramos e ficamos os três, abobalhados, sem saber o que fazer com o elevador que, sistematicamente, fechada a porta, dava uma chacoalhadinha, uma pausa e abria a porta no mesmíssimo lugar. Numa dessas operações, a moça "francesa" conseguiu interromper o fechamento da porta para "a" minha personagem entrar. O gesto foi suficiente para ela fazer muitos agradecimentos e dizer com alegria que ainda existe gente boa no mundo e etc., até o elevador repetir a mesma palhaçada: "Oh, oh!", disse a colega de viagem número quatro. Nova tentativa e nada. Logo ela avistou um saco plástico na porta do elevador, diagnosticou que aquele era o problema, arrancou ele de lá com uns chutes e, bingo, iniciamos nossa descida com risos e agradecimentos da outra parte. "Essa já é a minha parte de serviços comunitários", emendou a mulher, contando outras histórias curtas, coroadas com um "Oh, oh, ho", dessa vez cantado à Beyoncé, com coreografia de pescoço e tudo o mais, sintetizando o quanto se requer astúcia para resolver a vida naquela parte da cidade.
Finalmente a terceira mulher estava dentro do trem, mas não nesse: o trem da madrugada seguinte, quando "viajei" para buscar o Rezende no aeroporto JFK. Preciso contar que as minhas noites antes de viagens e de compromissos madrugadeiros têm sido uma agonia. Depois que entrei na "idade média" dei pra desconfiar de despertador e fico acordando a cada 15 minutos pra conferir se não perdi a hora. Naquela madrugada não foi diferente e, como chegara na véspera, era a segunda noite no mesmo ritual medonho. De onde estava hospedado, teria de tomar apenas um trem, então, mesmo com medo das estações mal iluminadas e encardidas do metrô de New York, resolvi arriscar. O recepcionista do hotel e o moço do guichê tentaram me ensinaram a pegar o trem "A", mas eu sou péssimo de gravar coisas em séries abstratas como ruas numeradas e trens de alfabeto. Em três minutos passei a esperar o trem "B" - que não viria, claro.
Veio o "A" e com ele a maior de todas as surpresas. Após o embarque, uma voz ecoa na plataforma vazia: "Sir?". Era comigo. De uma janela, uma mulher pergunta que trem estou esperando e para onde eu iria. "Quem disse ao senhor que o "B" vai ao JFK?". Acusei injustamente o moço do guichê, afinal ele não estava por perto e era vergonha demais assumi que troquei as letras. Depois de sentar no trem e começar a viagem, a mulher abre a porta de uma cabine e vem conversar comigo: era a maquinista!
"Gran Central" é um poema de Billy Colins, registrado no meu bloco de notas de um painel do mesmo trem e da mesma viagem da última história desta postagem
The city orbits around 8 million
centers of the Universe

and turns around the golden clock
at the still point of this place

Lift your ayes from the moving hive
and you will see tine circling

under a vault of stars and know
just when and where you are.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Feliz ano novo!

Caro/a leitor/a regular deste blog, grupo seletíssimo de mais ou menos quatro pessoas (todas parentas minhas, claro), antes de mais nada, desculpa pela "banguela" de texto do mês de janeiro. O fato é que fiquei resistindo de falar de temperatura, mas não tinha praticamente mais nenhum tópico mais “quente” em Winnipeg... Para ter ideia, no primeiro dia de fevereiro, às 9 da manhã, a sensação térmica era de -45ºC e, por artes do diabo, eu tive de andar meus cinco minutos pelas ruas da cidade, porque tinha uma palestra sobre a obra de "Santo Agostinho". Sendo organizada pelo departamento que me acolhe, eu não tinha como perder, mesmo sabendo que dos -40 para baixo, em três minutos o nariz da gente fica dormente como a bochecha de quem saiu do dentista... Que ódio que eu fiquei daquele santo-filósofo-doutor-da-igreja e muito do misógeno. E atenção mamãe! Preciso contar pra você a ideia dele a respeito da finalidade para a qual Deus teria criado a mulher. Já vou avisando que a senhora vai ficar meio aborrecida...
Escultura pré-colombiana (Museum of Natural History, NY)
Outro assunto possível seria a minha produção acadêmica mas, passada a lua-de-mel da conclusão do curso de inglês, e não tendo mais como evitar o segundo capítulo da tese, o tempo ficou definitivamente nublado e eu aprendi de uma vez por todas quais as situações em que a palavra "miserable" é apropriada para descrever como a pessoa tem se sentido... Então chegou fevereiro e, com ele, não apenas o carnaval, mas algo ainda melhor: minha semaninha anual de férias com o Rezende. Ano passado demos uma geral numa pequena parte dos museus, cinemas e livrarias de São Paulo. Dessa vez nos encontramos em New York e mais da metade das "atrações" foi apenas estarmos juntos depois do primeiro e mais longo intervalo de quatro meses nos últimos 20 anos. Ainda vou contar umas coisinhas dessa viagem pra você!

domingo, 30 de dezembro de 2012

Um tempo tátil

Graças a um presente do Reginaldo Rosa, ao longo de 2012 revivi uma experiência mágica da minha infância que é retirar a página do dia da Folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que os franciscanos reproduzem religiosamente deste não sei quando. Naquela época me sentia uma espécie de "senhor do tempo", prestando o serviço doméstico de estampar o nome, a cor, o número, a lua, o santo e um cento de outras informações que essa espécie de almanaque espreme em um minúsculo retângulo de papel ordinário, caprichosamente organizado. Nestes últimos meses, especialmente, desvelar a página nova assim que desmontava da cama me dava a sensação de tocar o tempo, imaterial por natureza.

Um detalhe da folhinha que me chama a atenção de modo particular é o balanço dos dias gastos e dos dias restante do ano em curso. Hoje, por exemplo, "-366/ + 0", ou seja, 2012 está nas últimas. Para minha desolação, amanhã não terei um pacote novinho na minha mesa, para curtir o "-1/ + 364". Não terei esse, mas já tenho outro rito, da mesma inspiração: com a mesma sistemática de "- dias vividos/ + dias a viver", tenho registrado no meu caderninho de notas uma sequência do meu ano particular de estágio aqui no Canadá.

Hoje, por exemplo, chego ao 107º dia nessas paragens, como quem chega a uma sexta-feira de semana extenuante. Nada a ver com o dia da semana e menos ainda com meu ritmo corrente de trabalho, dado que estou numa semana de vagabundagem. O "peso" de hoje deriva da saudade da magia que as passagens de ano da minha infância e adolescência costumavam ter. Nos tempos de vacas-gordas, no "dia-de-ano" envergava minha segunda melhor roupa nova, que perdia apenas para a roupa do "dia-de-reis" e era muito mais bonita do que a roupa "de-santa-cecília" e "do-natal". Essas quatro únicas roupas novas de cada ano seriam pouco usadas ao longo do ano novo, porque eram reservadas para acontecimentos especiais, como casamentos, batizados, enterros e outras "festas"...

Por mim, punha a roupa mais bonita já no ano novo, porque nada era mais emocionante do que o apagar das luzes de toda a cidade bem à meia-noite, iluminada por fogos, vivas, seguidos de cumprimentos entusiásticos dirigidos até a desconhecidos. A missa do galo e a procissão de "São-Bom-Jesus" não chegavam nem aos pés em rito, magia e inspiração. Já tive reveillon em Boa Viagem e em Copacabana, mas nada se compara àqueles de antigamente. Certeza que a passagem de logo mais será particularmente "chocha". E sempre me pelo de medo de que a "virada" seja um presságio do ano todo... Misericórdia!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Lá em casa era assim...


Quando criança, morria de inveja das casas que tinham enfeites de Natal. A árvore sobre a mesa de jantar nunca usada de vó Dorica, por exemplo, devia ter uns 30 centrímetros de altura, já era de um verde desbotado desde que eu me lembro, mas isso não tinha a menor importância. Era um deleite ficar olhando aqueles penduricalhos, todos desemparelhados, de formatos os mais variados. Lembro especialmente de uma "bola" (como chamávamos a todas, independente do formato) com cara de Papai Noel (sem corpo) e outra que era uma espécie de melão-de-são-caetano (comprido e retorcido). A campeã de originalidade, porém, era uma bola-guarda-chuva, cor-de-rosa se não me engano.

Lá em casa, porém, a história era outra: nada de bolas, árvores, nem nada. Acho que não é apenas porque fôssemos pobres e, hoje mais que antes, sei o quanto o éramos, com nossa "fazenda" de vacas com nomes próprios, "Mochinha", "Fofinha" e "Morena" - entre as mais famosas. Penso que esse jeito áspero de mamãe nos educar com economia de fantasia deve-se, em grande medida, à dor sem cura da perda da mãe dela, morta quando mamãe, a mais velha de uma prole de oito, tinha apenas 12 anos. Parece que fazer festa, em alguns momentos, significaria afrontar a memória daquela mulher, cujo luto sem fim parecia ser a forma possível de se reverenciar. Parece também que era a forma de mamãe preparar a gente para a hipótese, felizmente não confirmada, de crescermos sem os cuidados dela.

Eu não entendia direito essas coisas, mas sabia que, no Natal ou fora dele, a história da minha avó era assunto proibido, porque fazia sangrar. Por outro lado não estava disposto a viver sem fantasia, então, pegava carona no presépio da Matriz, sempre montado numa espécie de quarto, à direita do altar (e que já não existe mais), além, claro, da "disney" que era a sala de vó Dorica.

Lá pelos dez anos, mais ou menos, gastei minha mesada na compra de um festão prateado, que seria pendurado em forma de arcos, no portal entre as salas da nossa casa de Açúde Novo. Peguei um galho seco, cobri de algodão, fiz uns bolinhos de papel, coloridos com canetinhas e tivemos nossa primeira, e acho que única, árvore de natal. Odiei. Era um horror de feia, mas deixei lá num canto assim mesmo. Vez por outra ainda me volta à memória a perspectiva de quem deitava no safá e assistia o vento girar o festão, como o fuso brilhante de uma casa-de-farinha voadora, pra lá e pra cá.